domingo, 30 de dezembro de 2012

ARQUIVOS DO FUNDO DO BAÚ - O SOM DE LIVERPOOL - THE BEATLES - A GÊNESIS

Matéria publicada originalmente em 11 de dezembro de 2009
Por René Ferri“Jamais tive qualquer instrução musical. Ninguém me disse como cantar, ou o que fazer num certo ponto da canção, nem como apresentar canções. Nem Brian Epstein, pois Brian também não sabia – ele era tão amador quanto todos nós!” Esta declaração de Cilla Black, figura central da cena musical de Liverpool, muito semelhante ao que disse Marianne Faithfull a respeito da cena pop/ rythim & blues de Londres, envolvendo os Rolling Stones e Andrew Oldham, pode dar uma visão distorcida sobre a grande revolução musical dos anos 60 como se tudo tivesse acontecido por mero acaso. Claro que tudo não aconteceu dessa forma tão prosaica, mas a declaração de Cilla Black sumariza esplendidamente a situação de amadores, que agindo por intuição e entusiasmo e, com grande paixão, acabaram se dando muito bem. Manfred Mann, que por anos liderou um grupo que seu nome, desmente que o “Mersey Sound” tenha existido, dizendo que a diferença do som de Liverpool, era apenas o sotaque dos cantores, e o resto foi feito pela imprensa. Mann nunca engoliu ter sido “vendido” nos EUA como parte do “Mersey Sound”, pois em 64 quando o o mundo inteiro começava a se deslumbrar com a música dos Beatles, na Inglaterra, o “Mersey Sound” já estava completamente fora de moda, sendo substituído por uma nova tendência, o “Swinging London”, mais sedutora, mais moderna e urbana. E também mais fácil de vender, por ser mais comercial. Porém, toda a cena musical inglesa dos anos 60, tanto o “Mersey Sound” quanto o “Swinging London”, que incorporava o “British Rythim & Blues” dos Rolling Stones, Pretty Things, Yardbirds e Manfred Mann, tinha a mesma origem, decalcada da música negra estados-unidenses (norte-americana), o jazz, o folk e o blues. Liverpool era uma cidade operária e grande, a terceira maior de toda a Inglaterrra, com uma mistura étnica, das pessoas das mais diferentes origens, irlandeses, galeses, indianos, africanos, chineses, convivendo juntas, que a tornava um pouco diferente das outras cidades inglesas, também por este aspecto. Também tinha uma cena musical própria e forte, baseada no jazz tradicional, cultivado na Inglaterra desde o final dos anos 40 por orquestras como as de Ken Colyer, Chris Barber e Humphrey, Lyttelton. As bandas de jazz tradicional inglesas foram se interessar no começo dos anos 50, por uma forma de Jazz, conhecida como “skiffle”, que se originou na América nos anos 20. O “skiffle” era um conceito de se fazer música (jazz) de forma amadora, com amigos se reunindo e tocando seus instrumentos em festas, muitas vezes, instrumentos musicais improvisados, como a clássica “washboard”, a tábua de lavar roupa, usada como percursão. O “skiffle” era estritamente instrumental até que Chris Barber formou seu grupo de “skiffle” e gravou um LP em meados dos anos 50. Uma das músicas deste álbum, “Rock Island Line”, tinha como convidado o guitarrista Lonnie Donegan, o qual mostrou sua abordagem diferente do gênero, acrescentando vocais e uma forte dose de country music com influência folk, mais os sons primitivos do blues rural. Em ’56, o “skiffle” vocal de Lonnie Donegan tinha virado uma mania na Inglaterra, tendo até um programa exclusivo na rádio BBC. “The Six Five Special”. A febre do “skiffle” precedeu outra tendência revolucionária, o rock’n’roll que chegava com os primeiros filmes e os primeiros discos de Bill Halley, Freddie Bell & Bell Boys e Elvis. A Inglaterra tinha sua própria cultura pop, mas a música produzida, e os interpretes, eram cópias do pop estados-unidenses (norte-americano) e com o rock’n’roll não foi diferente – logo apareceram os ídolos do rock Made In England, que nada tinham de original. Rigorosamente, até o aparecimento da música beat, o “Mersey Sound” de Liverpool, somente The Shadows, com seu som instrumental épico, baseado em guitarras e Joe Brown & The Bruvvers, com seu enfoque muito pessoal do rock´n´roll, misturando rock ao country & western e music – hall tradicional, foram os únicos britânicos a fazer sucesso, com um som marcadamente original.


Em Liverpool, o desenvolvimento do rock’n’roll tomou um rumo muito diferente de Londres – a cidade não tinha estúdios, nem gravadoras, nem editoras musicais, mas tinha uma quantidade anormal de clubes onde se cultivava música ao vivo e muitos bares e locais onde as pessoas freqüentavam para dançar, ao som dos discos, que chegavam vindos dos EUA, com mais rapidez e facilidade, devido ao porto da Marinha Mercante no rio Mersey (o qual logicamente, originou os termos “Mersey Sound” e “Mersey Beat) que corta a cidade, e não apenas os sucessos de Hit Parade, mas também os discos de rythim’n’blues e country & western.
Bob Wooler, o primeiro DJ profissional de Liverpool, fala sobre a excitação que ele provocava entre os mais jovens quando começava a tocar os últimos discos que tinha recebido; e o assédio que recebia dos músicos locais, que pediam que ele indicasse músicas “novas” para agregarem ao repertório. O som de Liverpool, nos seus anos formativos, refletiam o gosto musical dos seus DJs. A falta de estações de rádio e TV locais, ajudavam a uniformizar o gosto médio da população, em torno da própria música feita ou tocada na cidade, uma vez que isolada, ficava imune aos modismos e tendências que vinham de Londres. É um engano pensar que os Beatles originaram qualquer coisa em Liverpool, em termos de tendência musical; ao contrário eles eram um produto do meio, vieram no bojo de um movimento musical espontâneo, que começou a se desenvolver quando Lonnie Donegan apresentou o “skiffle” e quando a Inglaterra forjou seu primeiro “Elvis”; o cantor “cockney” Tommy Steele, em ’58.
Liverpool tinha uma escola de arte que atraía os talentos jovens da dispersos, a Liverpool Art College. Parece que todos os músicos importantes de Liverpool dos anos 60, foram egressos de escolas de arte, como John Lennon e Paul McCartney, que entraram na música pegando onda “skiffle”, formando The Quarrymen, e tiveram diversos nomes e formações até chegar ao quarteto, THE BEATLES, com John, Paul, George Harrison e Ringo Starr, conforme a saga já exaustivamente contada. Então, o que fez a diferença? Por que os Beatles foram (ainda são) um sucesso extraordinário, enquanto todos os outros, centenas deles, desapareceram, assim que o movimento beat se esvaziou? A rigor, apenas Cilla Black e Gerry Marsden (Gerry & Peacemakers), sobreviveram artisticamente depois da falência do “Mersey Sound”. A diferença, esteve na serie formidável de casualidades que aconteceram nos anos formativos dos Beatles e que sempre os favoreceram – todo o fenômeno tem explicação, já os mistérios, como os talentos extraordinários de John e Paul como compositores, são inexplicáveis. Mas nem o talento nato dos dois teriam valido, se não tivesse aflorado e desenvolvido na mesma época , por volta do início de ’63 (sessenta e três). É bom lembrar que George Harrison somente se tornou bom compositor, muitos anos depois. E se isto tivesse acontecido com Paul McCartney? Também foi importantíssimo que o empresário Alan Williams os tivessem enviado para a Alemanha em 1960. Na barra-pesada de Hamburgo, o grupo se uniu e fez a opção defintiva pelo caminho da música, passando pelo batismo de fogo das tentações, amadureceram com a experiência. A saída de Stu Stucliff, que nada tinha a ver, musicalmente, com eles, foi muito positiva, assim como a aproximação da fotógrafa Astrid Kircherrr e do então artista gráfico, Klaus Voorman, que lhes deram apoio moral e material. Se não fosse por Astrid e Klaus, quem sabe eles teriam largado tudo, como Stu largou. Caso não tivesse ido a Hamburgo, conforme foi, a banda não teria ganho a força, a experiência e a unidade, e com as comodidades familiares perto, ficaria patinando na mediocridade até desaparecer, como tantas outras bandas de qualidade. Brian Epstein também apareceu na hora certa, outra casualidade. A própria inexperiência de Brian foi boa, pois se ele tivesse se comportado como um empresário profissional, teria tentado fazer com que os Beatles mudassem de estilo, talvez transformá-los numa banda de twist, ou qualquer coisa que estivesse em voga. Imaginar que os Beatles pudessem se transformar numa imitação de Joey Dee & Starlighters, é um pesadelo cruel, mas era o que poderia ter acontecido naquele início dos anos 60 e assim, arruinado tudo.Ao adotar os Beatles como seus protegidos, Brian deu a segurança que eles precisavam; estavam cansados das dificuldades e das vantagens boemias de se tocar numa banda de rock. Naquele momento, queriam se profissionalizar; ganhar dinheiro, fama e respeito e aceitaram tudo o que Brian lhes sugeriu. Brian mudou o visual dos Beatles, limpou aquela imagem retrô que eles tinham, roupas de couro e tudo mais que estava muito ultrapassada e lhes deu uma identidade visual totalmente nova. E dos quatro, quem mais representava essa imagem de rocker decadente era Pete Best. A troca de Best por Ringo Starr não foi benéfica apenas musicalmente, em termos visuais e em relação ao carisma, a banda teve um ganho excepcional. Carisma é outro item importante. E outro mistério. O carisma nasce com a pessoa e Ringo acabou revelando o mais carismático dos quatro, era nele que as atenções eram mais concentradas. Ringo agradava também as crianças e as pessoas mais velhas que nem tinham tanto interesse na musica dos Beatles. A entrada de Ringo melhorou muito o astral e o entusiasmo da banda, que com Best ficava meio para baixo, como os músicos competindo entre si. Outra contribuição enorme de Ringo aos Beatles foi o sentido do profissionalismo – Ringo era mais experiente e responsável em termos profissionais do que Paul, Josh ou George. Ringo era um músico sério, completo, profissional, já na época, capaz de tocar em qualquer banda ou orquestra do mundo. Houve a questão visual, dos cabelos compridos que na época foi uma tremenda revolução, algo verdadeiramente transgressor, com uma força simbólica, em relação à revolução dos costumes, hoje difícil de verbalizar ou compreender. Conta-se que Astrid Kirchherr criou o penteado com as franjas e o cabelo comprido. Talvez. Mas de qualquer forma, os Beatles foram os primeiros a adota´-lo. Na questão visual, aconteceu com os Beatles a uniformidade, que no Palco dava um efeito muito bom, isto é; os três que ficavam na frente, tinham a mesma altura e mais ou menos as mesmas características físicas e para melhorar; Paul era canhoto e assim, podia dividir o microfone quando cantava em dueto com George ou com John, se aproximando bastante sem que precisasse tomar cuidado para não esbarrar no outro. Aquele ângulo em “V” que o baixo de Paul formava com a guitarra mais próxima, era muito interessante visualmente, algo que a gente sentia falta quando olhava para qualquer outro grupo. Desta forma, a disposição das guitarras e do baixo, os cabelos compridos com as franjas, as botas de salto alto (também altamente transgressor), os ternos Pierre Cardin sem gola, combinando com aquela música, não podia dar errado, pois era simplesmente irresistível! Seis meses antes, qual seria a reação daqueles rockers bárbaros, de extração proletária e machista, com aquelas roupas de couro ensebadas e postura de arrogância e desafio, se um cara afetado e afeminado como Epstein lhes dissesse como agir e o que vestir?É sabido que os Beatles foram recusados pela Decca; o homem que assistiu à audição, Mike Smith gostou muito, mas os Beatles acabaram vetados pelo supervisor de Smith, Dick Rowe. È de se surpreender que naquele começo de 1962. Rowe não tenha tido a sensibilidade de perceber o talento emergente que estava naqueles rapazes, mas é bom lembrar que Brian Epstein passou os primeiros quatro meses daquele ano tentando assegurar um contrato com uma gravadora e os tapes (fitas) dos Beatles que Epstein levou pra Londres, foram recusados também peã Pye, Columbia, HMV e EMI. Era opinião generalizada nos meios musicais, que bandas de rock com guitarras não tinha futuro. E Dick Rowe tinha uma certa razão, pois a imagem que os Beatles passavam naquela época, ainda era aquela antiga, ultrapassada, um mix de James Dean com Gene Vincent, que na América (Estados Unidos), de onde vinham todos os modismos, não existia mais há tempos. É compreensível que Rowe tenha desgostado daquela profusão de topetes, costelas e blusões de couro. E até foi bom que tenha acontecido assim, pois nenhum dos grupos beat, contratados pela Decca depois, deram certo, nem mesmo os Mojos, da primeiríssima linha de bandas de Liverpool, e o Big Three, que até mesmo os Beatles consideravam os melhores do “Mersey Sound”.
Mas em maio de ’62 (sessenta e dois), Epstein mostrou os tapes para George Martin, que entre outras coisas era um homem de A & R (Artists & Repertoire) da Parlophone, uma subsidiária da EMI, que se interessou. Os Beatles voltaram da sua terceira viagem de Hamburgo para uma audição com Martin na Parlophone. Martin gostou muito dos Beatles, mas não aprovou o baterista, Peter Best, que foi mandado de volta a Liverpool. Ringo, o baterista de Rory Storm foi convidado a se juntar ao grupo definitvamente, pois em diversas ocasiões anteriores, ele já havia tocado com os Beatles. Uma sessão foi marcada nos estúdios da EMI na afamada Abbey Road, e em outubro, Love Me Do foi editado. O som do single Love Me Do / P.S. I Love You era totalmente novo e diferente de tudo que se conhecia em rock, graças à produção de George Martin, um homem que possuía uma orquestra, com gosto mais voltado para música instrumental, para o clássico ligeiro e que antes dos Beatles, jamais tinha produzido um disco de rock. Os dois lados do disco eram composições de Lennon e McCartney, um risco consciente que correram, pois teria sido mais seguro terem gravado pelo menos no Lado A, uma música de algum compositor “profissional”. Love Me Do tem uma ligeira influencia “country” (por mais estranho que pareça, o country & western era um gênero muito apreciado e cultivado em Liverpool), com as longas frases de gaita-de-boca de Lennon, um hit de Bruce Channel, do começo de ’62, Hey Baby. Já P.S I Love You tem um leve toque latino na percursão, um recurso que os Beatles iriam usar várias vezes. A questão é que os Beatles tivessem caído nas mãos de um produtor convencional, seu primeiro disco teria saído muito diferente, com outras músicas, possivelmente, e com as cordas que sempre adocicaram os discos de rockers ingleses como Marty Wilde, Cliff Richard e Billy Fury. Em 11 de outubro de ’62, Love Me Do entrava no Hit Parade e em semanas atingiria sua posição mais alta 17º lugar.


Com a campanha e um disco colocado no Top 20, os Beatles saltavam bem à frente dos rivais em Liverpool, Brian Epstein, cuja família possuía uma rede de lojas de discos, onde pela sua primeira vez sua atenção chamada para os Beatles, quando um cliente lhe perguntou sobre uma gravação My Bonnie, feita pelos Beatles na Alemanha, conforme o próprio Brian relata na sua autobiografia A Cellar Full Of Noise de ’64, anotando até a data da ocasião, 28 de outubro de 61 ), criou a Nems Enterprises, para empresariar os talentos promissores de Liverpool. Em janeiro de ’63 (sessenta e três) saía o segundo single dos Beatles, Please, Please Me / Ask Me Why, que foi para o 1º lugar: Porém, quando semanas depois, o primeiro disco de Gerry & The Peacemakers, outro contratado da Nems, How Do You Do It / Away From You em selo HMV, foi também para o 1º lugar, ficou claro que o “Mersey Sound” estava estourando.

O ano de 1963 foi o ano do “Mersey Sound” na Inglaterra, com nada menos que 10 singles colocados em 1º lugar durante todo o ano e mais dúzias de discos colocados em altas posições no Hit Parade. Esta foi a época em que aflorou o extraordinário talento de Paul e John como compositores, que garantiu que os Beatles ficassem muito acima dos concorrentes em termos de sucesso. Depois dos Beatles, de John e Paul, a figura do compositor ficaria para sempre vinculada ao interprete. Antes dos Beatles, raramente o interprete escrevia suas próprias músicas.


Enquanto os Beatles iam quebrando recordes, como enfileirar 12 singles em 1º lugar, colocar um EP Twist & Shout na parada de singles, devido à quantidade que vendeu, e She Loves You, seu quarto single, ter vendido 500 mil cópias antes de ser editado, a maior venda antecipada da década, na Inglaterra, as bandas de Liverpool iam consolidando o “Mersey Sound” com discos de grande sucesso e excelente aceitação critica: Gerry & The Peacemakers, colocou seus três primeiros discos, todos editados em ’63, em 1º lugar: Billy J. Kramer teve dois singles em primeiro lugar e o terceiro apenas em 4º lugar durante o mesmo ano, com composições de John e Paul, “Do You Want To Know A Secret?”, “Bad To Me” e “I’ll Keep You Satisfied”, os Searchers, que não tem eram ligados a Epstein, tiveram um 1º lugar em junho de ’63, com Sweets For My Sweet e um 2º lugar em outubro com Sugar & Spice. Os Swinging Blue Jeans, tiveram um 2º lugar em dezembro de 63, com uma espetacular regravação de”Hippy Hippy Shake”, de um obscuro rocker estados unidense chamado Chan Romero – neste mesmo mês, fechando o ano, os Beatles tinham nada menos que sete singles colocados nos Top 20. Com todos os jornais escrevendo grandes matérias sobre Liverpool, a BBC produziu um detalhado documentário para a TV, chamado “The Sound of City”. A ironia é que quando o programa foi ao ar, os músicos que tinham inventado o “Mersey Sound”, os responsáveis pela lenda da “Beat City”, já tinham se bandeado para Londres buscando uma oportunidade. Alguns tiveram seu momento de glória, mas a grande maioria acabou voltando para Liverpool, que drenada dos seus melhores músicos e talentos, assistiu o “Mersey Sound” definhar e morrer, marcando o fim de uma extraordinária era na história da música pop.

 

4 comentários:

João Carlos disse...

Muito bom o artigo. Li num fôlego só !

Valdir Junior disse...

Ótimo post !!!
Também tenho essa revista no inicio do post !!! Bem Legal !!!

Leonardo Piccioni disse...

Excelente post! Adorei.

Leonardo Polaro disse...

Parabéns ! Agora, essa ´´rock island line´´ seria a mesma do disco 2012 do Ringão ?