quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

8 DE DEZEMBRO DE 1980


“Se a Jeannie, ou outro gênio qualquer (podia ser até aquele do ‘Alladin’, da Disney), aparecesse e me concedesse três pedidos, acho que só faria um, o primeiro: “Queria ter 16 anos outra vez!”. Depois faria os outros dois. Nops! Sem gênios, sem John Lennon... Há 31 anos, apesar de tanto trabalho, meu mundo mudou demais. E eu era quem mais acreditava que “Nothing is going to change my world”. John Lennon era tudo pra mim. Aquele dia foi um pesadelo absurdo, como perder um irmão que você conhece desde que nasceu. O amigo que não era invisível. Simplesmente, me negava a acreditar naquilo. “É uma farsa! Mais uma ‘pegadinha’ do velhão”. Não era! John Lennon estava morto. Aquilo não era só um pesadelo terrível... era pior, era real! Os textos que a gente confere a seguir, foram “extraídos” do livro “A BALADA DE JOHN & YOKO – Pelos editores da Rolling Stone”, publicado no Brasil em 1982.
Cercado pelas paredes forradas de mogno do escritório do Edifício Dakota, em Nova York, numa das mais quentes noites de dezembro já registradas, Jay Hastings esperava que John Lennon e Yoko Ono voltassem para casa. Jay era um porteiro forte, de barbas, e trabalhava no Dakota há mais de dois anos. Costumava dizer sempre que a melhor parte de seu trabalho fora ficar conhecendo John e Yoko, proprie­tários de cinco apartamentos no edifício. Hastings era fã dos Beatles desde garoto, tendo inclusive colecionado fotografias do quarteto fabuloso. Mas agora era tão somente um fã. John Lennon sabia seu nome, e dizia "bon soir, Jay", sempre que voltava com Yoko do estúdio ou de uma noite na cida­de, às vezes fazendo brincadeiras. Mas nessa noite Jay tinha uma surpresa: um chapéu de chuva feito de Plexiglas que um modista de vanguarda havia deixado para Yoko, e fazia planos de pedir que os dois tentassem adivinhar o que era. Hastings estava lendo uma revista, pouco antes de onze horas, quando ouviu vários tiros fora do edifício, e depois sons de vidro esti­lhaçado. Sobressaltou-se, e ouviu alguém subindo a escada do escritório. John Lennon cambaleou porta adentro, no rosto um olhar confuso, terrível. Yoko entrou logo depois, gritando: "Jonn foi baleado. John foi baleado". A princípio, Hastings pensou que aquilo fosse uma brincadeira maluca. Lennon andou vários passos e caiu, espalhando pelo chão as fitas cassete que tinha nas mãos, gravadas na última sessão de que participaria.
Hastings apertou um alarme que chamava a polícia e correu para junto de John. O angustiado porteiro delicadamente tirou os óculos de Lennon, que pareciam fazer pressão' em seu contorcido rosto. Em seguida, tirou seu paletó azul do Dakota e cobriu Lennon; depois tirou a gravata para usar como torni­quete, mas não havia lugar para aplicar um torniquete. O sangue jorrava do peito e da boca de John, seus olhos estavam abertos, porém desfocados. John tossiu uma vez, vomitando sangue e pedaços de tecido.
Yoko, transida, gritava pedindo um médico e uma ambulância. Hastings discou 911 e pediu ajuda. Depois voltou para junto de Lennon e disse: "Tudo bem, John. Você vai ficar bom".
Nesse momento, o porteiro de fora entrou e disse a Hastings que o agressor tinha largado a arma na calçada. Hastings saiu atrás do atirador mas não era necessário. O atarracado jovem que havia atirado em Lennon estava calmamente em pé na rua 72 West, lendo O Apanhador no Campo de Centeio.
De repente chegaram duas viaturas, de onde saltaram quatro guardas, armas na mão. "Mãos para o alto!", gritaram para Hastings, de olhos esbugalhados e coberto de sangue. "Não é ele", gritou o outro porteiro. "Ele trabalha aqui, é aquele ali", e apontou para o jovem que lia. "É aquele."
Dois dos tiras prensaram o suspeito contra a elegante fachada do Dakota. Hastings e os outros dois guardas correram para dentro do edifício. Foi então, depois de ver a janela do escritório estilhaçada e o sangue no caminho, que Hastings percebeu que John Lennon estivera morrendo diante de seus olhos.
Contra a vontade de Yoko, a polícia virou o corpo de Lennon para avaliar os ferimentos. Disseram que não podiam esperar uma ambulância, e cuidado­samente ergueram-no do chão. Hastings, segurando o braço e ombro esquerdos de Lennon, ouviu ruídos de ossos partidos enquanto carregavam-no para fora. O corpo de Lennon estava rígido, seus braços e pernas caídos, e assim foi colo­cado num carro de polícia para ser levado até o Hospital Roosevelt. Yoko subiu num segundo automóvel, Hastings voltou para o edifício e ficou espe­rando no escritório. Trinta minutos depois a notícia chegou ao Dakota: John Winston Ono Lennon, marido e pai, de quarenta anos, estava morto.
O garboso e imponente Dakota transformou-se numa fortaleza sitiada No lado de fora dos portões de ferro fundido trancados, centenas de pessoas que tinham ouvido a notícia cantavam: "All we are saying is give peace a chance" ("Tudo o que dizemos é dê uma chance à paz"). O pátio do Dakota — tran¬quilo e espaçoso durante o dia — era uma sombria terra-de-ninguém patrulhada por crispados tiras nova-iorquinos. Em cada entrada estavam postados guardas armados, o subsolo estava também guardado. Yoko Ono, escudada pelo amigo e produtor David Geffen, entrou disfarçadamente pela porta de trás.
Endurecidos sargentos do departamento de homicídios comandavam o escri¬tório, cujo piso de pedra cinzento estava manchado por uma escura poça de sangue. Dois perplexos tenentes, de olhos vermelhos, que tinham chegado para saber o que estava acontecendo, começaram a preparar fichas para cada residente do Dakota, incluindo os nomes de Rudolf Nureyev, Lauren Bacall, Leonard Bernstein e a cómica de TV, Gilda Radner. O telefone não parava de tocar. Não, dizia uma telefonista, não sabia por que John Lennon tinha sido baleado. Não, disse a outro chamado, não queria entrar em contato com nenhuma firma que congelasse corpos até que se desenvolvesse uma tecnologia que pudesse trazê-lo de volta à vida.
Durante noventa minutos, mais de uma dúzia de detetives ansiosos e bem vestidos bombardearam Jay Hastings com perguntas. A que horas aconteceu? Lennon estava no escritório? Estava correndo? Falou alguma coisa? Caiu? Depois o quê? Hastings não sabia como decompor os acontecimentos em sua mente. As perguntas não paravam, sua cabeça doía, ele fumava um cigarro atrás do outro. O dr. Elliot Gross, o severo médico oficial, chegou mais tarde e fez Hastings passar por tudo de novo. Quando o interrogatório finalmente termi¬nou, Hastings sentou-se ao lado dos portões negros ornamentados, atordoado, bebericando Wild Turkey num copo de papel verde. E ficou olhando se expressão para os pranteadores que cantavam e a dúzia de rosas vermelh penduradas no portão. Jay não trocou a camisa branca, manchada de sancu seco. "É como um canto fúnebre", disse sobre a música de Lennon que ecoava pela noite morna.
Às duas da manhã, três horas depois de Lennon ter sido baleado, a polícia chamou o Vigésimo Distrito pedindo reforços e barricadas adicionais, pois multidão estava crescendo. Richard J. Nicastro, no comando dos detetives de Manhattan, mandou uma perua equipada com rádios, telefones e outros equipa¬mentos de comunicação. Perto de quarenta guardas uniformizados mantinham a vigilância. Mas, no geral, as milhares de pessoas que prantearam John foram bem comportadas, permanecendo em silêncio, chocadas pela dor.
Dentro do edifício, Hastings acendeu outro cigarro e olhou para a multidão. Os fotógrafos, repórteres e equipes de TV o aborreciam. Os flashes e holofotes provocavam um clarão surrealista. Mas estava contente por tantos virem mostrar seus respeitos. Para ele era difícil compreender porque os adolescentes — que não tinham crescido ouvindo os Beatles, como ele — estavam tão abalados.
"É como se eles se apoiassem nas nuvens para encontrar a própria identi¬dade", dizia numa voz suave e monocórdica. "Eu colecionava fotos dos Beatles, ganhei Um Encontro com os Beatles de presente de aniversário! Eu vi Help!, quando passou pela primeira vez. Tem alguma coisa nisso. Mas posso enten¬der que eles queiram demonstrar alguma coisa. Afinal o homem morreu."
Tiras entravam e saíam do edifício do Vigésimo Distrito, perto dali, na rua 82 West, onde o suspeito assassino encontrava-se fortemente guardado. A polí¬cia identificou o suspeito como Mark David Chapman, fã dos Beatles e pretenso suicida que andava em volta do Dakota há três dias. Lennon tinha autografado um disco para Chapman naquela mesma tarde.
"Ele parecia um cara simpático", disse Hastings referindo-se a Chapman, servindo mais uma dose de bourbon. "Eu vi quando deu uma nota de dez dólares para um vagabundo que chegou pedindo dinheiro. O vagabundo entrou em êxtase, beijou-o e tudo o mais. Ele não incomodava ninguém aqui; eu mal o notava."
A voz de Hastings falhava ao retratar o assassino calmamente em pé, na calçada, depois de ter atirado em Lennon. O pensamento de que alguma coisa poderia ter sido feita para manter Chapman afastado do edifício lampejou e passou. "As pessoas vinham para ver o John sempre; um a mais era apenas mais uma gota no balde. A gente não sabe quem é quem. Às vezes, eles ficam chatos, veteranos persistentes das guerras das drogas. Às vezes, são levemente psicóticos. Geralmente é possível dizer de cara se alguém é um pouco estra¬nho, e pode-se ficar mais atento com ele."
Lennon nunca se queixava da situação, disse Hastings, embora algumas vezes, se havia pessoas estranhas por perto, o porteiro do lado de fora dizia ao moto¬rista de Lennon que passasse com a limusine e entrasse na garagem. No dia de dezembro a limusine ficou do lado de fora, e Lennon andou da rua ate a arcada de pedra do Dakota, onde seu assassino o esperava nas sombras, pront para atirar à queima-roupa.
"Pelo menos ele não sofreu", disse Hastings com um estremecimento. "John morreu num piscar de olhos. Eu sabia que ele não sobreviveria a não ser que acontecesse um milagre."
Hastings ficou um pouco imóvel, sem falar. Um dos funcionários do turno da noite do Dakota disse para que fosse para casa descansar, mas ele manteve sua vigília, recordando sua amizade casual com Lennon, que uma vez perguntara como ele aparava a barba, mandando depois alguém comprar os cortadores que havia recomendado. Alguns meses depois, Lennon disse a Hastings que ia tirar a barba porque ela o tornava reconhecível demais nas ruas.
"John parecia mais feliz, agora que estava fazendo música outra vez e saindo mais em público", comentou Hastings. "O novo disco com a Yoko parecia uma profissão de fé, como acontece com pessoas que fazem 25 anos de aniversário de casamento e vão à igreja renovar seus votos. Ele e Yoko tinham um bocado de fé um no outro."
Por volta de 4:30, um por ta-voz do Dakota saiu e pediu aos pranteadores que abaixassem o volume dos rádios, pois Yoko estava tendo dificuldade para dormir.
Finalmente Hastings resolveu ir até a casa de um amigo para tentar descan­sar. Entrou no despojado vestiário de empregados no subsolo, segurando ainda o copo de papel verde e um cigarro, e lentamente desabotoou sua camisa suja de sangue, tirou-a e jogou numa cesta de roupas sujas. Depois vestiu suas roupas normais, subiu novamente e parou um momento para consolar o sofrido séquito reunido no estúdio de Lennon, no andar térreo. O dia quase amanhecia quando Hastings passou pela última vez pelo escritório naquela manhã, onde agora um faxineiro lavava o sangue do piso. Fora, os portões da arcada já estavam cobertos com centenas de flores.
"Homem baleado na rua 72 West", disse o chamado no rádio da polícia pouco antes das onze horas da noite. Os policiais Jim Moran e Bill Gamble estavam no terceiro carro azul e branco que brecou fora do edifício de apartamentos Dakota. O homem que fora baleado não podia esperar pela ambulân-Icia, e os dois esticaram-no no banco de trás do carro e corre­ram para o Hospital Roosevelt, na esquina da rua 59 com Nona Avenida. Puseram o corpo ensanguentado sobre uma maca e empurraram-no até a sala de emergência. Não havia nada que os médicos pudessem fazer. Lennon foi dado como morto às 11:07 horas da noite. Howard Cosell, o locutor de esportes mais conhecido do país, transmitiu um boletim no noticiário da TV WABC de Nova York e anunciou o atentado no meio do Monday Night Y Football. A notícia se espalhou como fogo no mato. Em minutos, o pequeno estacionamento de ambulâncias do Hospital Roosevelt abrigava umas duzentas pessoas que olhavam sem expressão para as portas duplas fechadas do pronto-socorro. Alguns dos motoristas de táxi, que depositavam repórteres a razão de dois ou três por minuto, juntaram-se à multidão. Um deles afirmou em voz alta que soubera de boa fonte que John Lennon já tinha chegado morto. Uma jovem chorava sozinha no meio da Nona Avenida.
A multidão continuava crescendo. Por volta da meia-noite, chegou uma mu­lher de maneiras resolutas. A etiqueta negra de seu avental branco dizia que era A. Burton, diretora de relações públicas do hospital. Os repórteres bombar­dearam-na com perguntas. "Eu prefiro que o médico fale com vocês", disse. "É o dr. Stephan Lynn, diretor do serviço de emergência", e teve de soletrar o nome umas cinco ou seis vezes.
O dr. Lynn enfrentou a imprensa mais ou menos dez minutos depois da meia-noite. "Um pouco mais perto, doutor", gritou um fotógrafo, e os motores automáticos das Nikon começaram a soar, enquanto luzes estroboscópicas atin­giam-no como dardos. Dentro de seu imaculado avental branco, o médico estava nervoso. "John Lennon", disse, e fez uma pausa de pelo menos vinte segundos. "John Lennon", continuou finalmente, "foi trazido para o pronto-socorro do Hospital Roosevelt esta noite, pouco depois de onze horas. John Lennon estava morto ao dar entrada", concluiu, provocando expressões de espanto na impren­sa. "Foram feitos extensivos esforços ressuscitadores, mas a despeito de trans­fusões e diversas outras medidas, não foi possível ressuscitá-lo."
— Onde ele foi atingido, doutor, e quantas vezes? — perguntou a imprensa.
— Foram múltiplos os ferimentos a bala no peito, no braço esquerdo e nas costas — respondeu Lynn, — Havia sete ferimentos em seu corpo. Não sei exatamente quantas balas. Houve um ferimento significativo nos principais vasos do peito, que provocaram uma perda de sangue maciça, o que provavelmente resultou na sua morte. Tenho certeza que foi morto no momento em que os primeiros tiros atingiram seu corpo.
— E quanto à esposa dele?
— A esposa estava com ele na ocasião dos ferimentos e na verdade acompanhou-o até o pronto-socorro.
— Você disse a Yoko que Mr. Lennon estava morto? O que disse ela?
— Informei a sua esposa que ele estava morto. Ela estava... bastante chocada na ocasião, e achou muito difícil aceitar o fato. Ela não se encontra mais no hospital.
— Mr. Lennon ainda está no hospital?
— Seu corpo está no hospital.
Os repórteres saíram da sala de emergência, depois correram seguindo a trilha do assassino.
"Aqui não vai ter nenhum Jack Ruby", disse um tira de expressão severa, de maneira quase casual, enquanto o suspeito era conduzido para dentro do Vigésimo Distrito, na rua 82 West. O suposto assassino encontrava-se completamente cercado por tiras, um rosto pálido boiando num mar de uniformes azuis. Logo depois desapareceu dentro do elevador.
Às duas da madrugada, James T. Sullivan, chefe dos detetives, andou até um estrado na sala de entrevista para enfrentar as luzes das emissoras de TV e as centenas de representantes da imprensa. Vestia um imaculado terno de sarja azul, camisa de listas finas e gravata escura. O distintivo de ouro em seu peito brilhava sob os holofotes, e sua mão esquerda descansava no bolso da calça.
— Pedimos que viessem para que possamos dar um breve relato sobre o que sabemos até agora sobre o homicídio de John Lennon — disse, com um leve toque de nervosismo na voz. — Nós prendemos Mark David Chapman, residente na rua South Kukui, 55, no Havaí, pelo homicídio de John Lennon. É um homem caucasiano, pele bronzeada, um metro e setenta, oitenta quilos, cabelos castanhos, olhos azuis, 25 anos de idade. Nascido no dia 10 de maio de 1955, aparentemente está em Nova York há mais ou menos uma semana, tendo ficado hospedado na YMCA (Associação Cristã de Moços), não sei ao certo qual. Recentemente estava hospedado no Sheraton Centre, e esteve ro­deando o Dakota durante os últimos dias. Conseguiu obter um autógrafo num disco de Mr. Lennon quando este saía para o estúdio. Permaneceu no Dakota a noite toda esperando que Mr. Lennon voltasse. Algum tempo depois das onze horas, John Lennon e sua esposa chegaram de volta ao Dakota numa limusine. Estacionaram a limusine fora do edifício. Existe uma entrada de automóvel que poderia ter sido usada, mas nesta ocasião não fizeram isso. Os dois saíram e andaram até a arcada do Dakota... Este indivíduo, Chapman, saiu de trás e chamou Mr. Lennon. Em seguida, em posição de combate, disparou, esvaziando o revólver Charter Arms calibre 38 que tinha com ele. Sullivan, que tinha acumulado uma solitária gota de suor sobre o lábio supe­rior, passou a contar a prisão de Chapman, que se "comportou muito calma­mente". Sullivan respondeu umas duas dúzias de perguntas, variando de "Chap­man fez uma confissão completa?" ("Não posso responder a esta pergunta")a "O que disse Mr. Lennon?" ("Disse: 'fui baleado', enquanto entrava no edifício"), passando por "Ele estava fumando?", que Sullivan não respondeu. Sullivan respondeu a última pergunta às 2:24 da madrugada.Estava tudo acabado agora, ainda que estivesse apenas começando. A morte de John Lennon e a prisão de seu assassino estavam registradas. O choque havia sido plantado, e a reação estava crescendo.
Eles olhavam como se estivessem esperando o início de um show, e pareciam prontos para se perderem na música. Mas não havia banda nem música fora do edifício de apartamentos Dakota, na rua 72, no Central Park West, Nova York. Mesmo assim, eles se esmagavam contra as barricadas da polícia, sabendo que John Lennon tinha sido baleado e morto no saguão, a poucos metros de distância. Por volta da meia-noite, já havia centenas de admiradores reunidos.Um jovem passava bastões de incenso; outro trouxe uma caixa de cerveja e passava as garrafas em volta; um terceiro distribuía fotografias de Lennon. Uma mulher chorava, e teve o rosto atingido pelas luzes de uma câmera de TV a procura de lágrimas.
Um bêbado engoliu o resto da garrafa e agarrou alguém pelo colarinho: "Esse filho da puta tinha senso de humor, sabe! Nós devíamos fazer uma festa!"
Uma mulher aproximou-se de um policial perguntando se poderia deixar um presente, um polvo de pelúcia que pertencia a seu filho.
— Por favor dê isto ao Sean. Diga que sinto muito não poder dar um
elefante marinho (walrus) de pelúcia — e afastou-se, falando calmamente com
um repórter: — Eu tenho quase quarenta anos, e John foi muito importante
pra mim. Quantos homens você conhece que ficariam em casa cinco anos
criando um filho?
Mitch Weissman e Joe Pecorino, astros do show Beatlemania, em cartaz na Broadway, foram até o Dakota. Os dois moravam a apenas uns quarteirões de distância.
— Eu fico pensando em todos esses anos em que o governo tentava depor­
tá-lo disse Pecorino, que no espetáculo faz o papel de Lennon. — Agora
parece péssimo que eles não tenham conseguido.
Weissman, que faz o papel de Paul MacCartney, disse que tinha conhecido Lennon umas duas semanas antes.
— Eu disse a John que esperava sair do espetáculo para fazer outras coisas.
"Eu posso imaginar o que está sentindo", me respondeu ele. "E muito difícil
deixar de ser um Beatle."
De repente havia música. Uma das vozes atacou Give Peace a Chance e foi logo seguida por outras, a princípio hesitantes, depois com toda força. Eles cantaram a música, sem parar, por uns trinta minutos. Depois foram ligados rádios portáteis tocando músicas de Lennon, e a multidão cantou junto, noite adentro.
Por volta de 4:30 os fãs começaram a se afastar. Caminhões estremeciam o Central Park West, parando aqui e ali para entregar pilhas de jornais cujas manchetes gritavam a má notícia. Em San Francisco, Londres, Tóquio, Berlim Oriental e muitas outras cidades ao redor do mundo, outros jornais logo esta­riam levando as mesmas notícias. Até mesmo em Varsóvia, pelo menos por um dia, os jornais considerariam a morte de John Lennon mais importante do que as tropas soviéticas reunidas na fronteira da Polônia.
— Foi tão súbito — disse Yoko a um amigo que chegara a seu apartamento do Dakota. — Nós tínhamos planejado comer fora depois de sair do estúdio, mas resolvemos vir direto para casa. Estávamos andando para a entrada quando ouvi os tiros. No começo não percebi que John tinha sido atingido. Ele conti­nuou andando. Depois caiu e vi o sangue. Naquela noite, Yoko telefonou para Paul McCartney, que estava em sua fazenda no interior da Inglaterra, e para Mimi Smith, a tia de 65 anos que tinha criado John desde a idade de três anos. Tia Mimi estava em Dorset, Inglaterra, na casa que John lhe dera de presente. Yoko esperou até o dia
seguinte para dizer a Sean, o filho nascido dela e de John cinco anos antes.
Yoko passou a maior parte daquela primeira semana dentro do Dakota, quase o tempo todo no quarto, com as persianas puxadas. Ocasionalmente
falava ao telefone ou via um visitante.
Ringo Starr, que tinha estado com os Lennon no dia de Ação de Graças, interrompeu suas férias nas Bahamas para voltar a Nova York. Ele e a noiva, Barbara Bach, chegaram na tarde de terça-feira e foram direto para o aparta­mento de Yoko. Ringo brincou um pouco com Sean, chegou mesmo a fazê-lo sorrir. Depois de algumas horas recolheu-se, sozinho. "Ele está extremamente chocado", disse um porta-voz, "e não quer dizer nada além disso".
Mais ou menos quando Ringo partia, Julian Lennon, de dezessete anos, che­gou ao Dakota vindo de Gales do Norte, Inglaterra. O filho de John com sua primeira esposa, Cynthia Twist, tinha crescido mais próximo de sua madrasta e de seu meio-irmão.
Paul McCartney, pálido e abatido, saiu de casa ao meio-dia de terça-feira. Mo momento a ideia me parece insuportável", disse aos repórteres que o esperavam do lado de fora. "John era um grande homem, que será lembrado por suas originais contribuições na arte, na música e na paz mundial", concluiu. Em seguida dirigiu até o AIR Studios, em Londres, de onde telefonou para Yoko. Passou o resto da tarde trabalhando e falando com George Martin, o produtor que havia supervisionado as gravações de quase todos os LPs dos Beatles. Guardas-costas especiais foram trazidos para manter afastada a multidão de repórteres e fotógrafos, alguns dos quais tentaram entrar pelas escadas de incêndio.
Ao sair do estúdio, Paul expressou o desejo de que todos "dessem todo apoio a Yoko". Nem sempre Paul esteve em bons termos com Yoko, e sua amizade com John, que vinha desde a infância, tinha se dissolvido no início dos anos 70. Mas um porta-voz de Paul disse que os dois tinham se encontrado e conversado socialmente diversas vezes em passado recente. "A rusga foi há anos atrás. John e Paul passaram por muitas coisas juntos, e respeitavam o trabalho um do outro", afirmou. O porta-voz disse também que os dois esta­vam se tornando "grandes amigos" outra vez.
George Harrison foi avisado por um telefonema de Louise, sua irmã, em Oxford. George cancelou uma sessão de gravação e retirou-se em sua mansão. Recusou-se até mesmo a entrar em contato com seu escritório, e por várias horas seus associados não sabiam ao certo de seu paradeiro. Naquele mesmo dia, muito mais tarde, George disse o seguinte: "Depois de tudo que passamos juntos, eu tinha, e ainda tenho, um grande amor e respeito por John. Estou atordoado. Roubar uma vida é o roubo mais definitivo".
Tia Mimi, entrevistada em Dorset, disse que "John cuidava de mim como se eu fosse sua mãe... Nunca houve a possibilidade de que ele fosse uma pessoa comum. Ele teria sido bem sucedido em qualquer coisa que fizesse, e era tão feliz como o dia era longo".
Ringo deu a notícia para sua ex-esposa, Maureen Cox, e a ex-esposa de John, Cynthia, que por acaso estava hospedada na casa de Maureen. Cynthia disse que apesar de ser divorciada, continuava tendo John na mais alta estima: "Eu gostaria de falar a vocês sobre John", disse aos repórteres, "mas sei que, se tentar, as palavras simplesmente não vão sair. É muito, muito doloroso. Tudo que posso fazer é ficar aqui na Inglaterra, lavando e passando roupas para manter minha cabeça afastada do assunto".
O cantor Harry Nilsson, companheiro de bebedeiras de John durante uns tempos difíceis, foi uma das doze pessoas que puseram anúncio no Daily Variety exortando a "todos que o amavam" a jurar nunca mais "votar em nenhum candidato político que não apoiasse controle federal de armas de fogo e munição".
A reação de Elton John, que é padrinho de Sean, foi "péssimo, péssimo, pés­simo", segundo um associado, que disse também que "ele estava muito entris­tecido", tendo também mandado um telegrama da Austrália, onde excursionava. Eric Clapton, de acordo com seu empresário, "ficou muito, muito zangado. A primeira coisa que demonstrou foi uma raiva incrível. Eu nunca tinha visto Eric nesse estado antes, a coisa afetou-o demais". Bob Dylan entrou em reclusão em Los Angeles. Peter Townshend estava também chocado demais para dizer algo de imediato, mas Roger Daltrey, vocalista do Who, disse: "É terrível. Meu coração está com a sua família". Mick Jagger, dando os últimos retoques no seu LP em Paris, disse: "Não quero fazer uma observação logo agora, num momento tão doloroso para sua família". Tanto Mick Jagger como Keith Richards mandaram telegramas a Yoko.
Em Londres, pessoas de todas as idades sentavam-sc cm ônibus e metros de olhos vermelhos, balançando a cabeça sem querer acreditar na manchete do News Standard, o primeiro jornal a ganhar as ruas com a história, Em Liverpool os pranteadores dirigiram-se para a Mathew Street, local do Cavem, o clube subterrâneo onde os Beatles se estabeleceram como conjunto local. Em Berlim Oriental, a estação de rádio DDR-I interrompeu sua habitual campanha contra o rock ocidental e colocou no ar uma hora e meia de canções dos Beatles. A agência oficial de notícias da Alemanha Oriental elogiou Lennon por sua posição contra a Guerra do Vietnã. O mais conhecido clube de jazz de Hamburgo, o Onkel Po, tocou (Just Like) Starting Over antes do espetáculo, a primeira vez que um rock and roll precedeu um espetáculo de jazz da casa. A plateia ficou em pé. As vendas de discos de Lennon, velhos e novos, aumentaram dramaticamente. Na Alemanha Ocidental as encomendas de Double Fantasy subiram de 10.000 por semana para 50.000 por dia. Foram organizadas manifestações em dezenas de cidades em todo mundo. Em Toronto, reuniu-se uma multidão de 35.000 pessoas na noite de terça-feira, na neve, enfrentando um vento cortante, para uma vigília à luz de velas. Na quarta-feira, a história era notícia de primeira página em quase toda parte, inclusive nos oito maiores diários ingleses. A manchete do Daily Mirror dizia Morte de um herói. O pragmático Times definia Lennon como um "poeta", e disse dos Beatles: "Eles não foram os primeiros jovens da classe trabalhadora e com sotaque provinciano a provocarem um impacto na vida da Inglaterra, mas seus exemplos possibilitaram que milhões rompessem as barrei¬ras que existiam entre classes.. . Seus exemplos tiveram uma grande influência". A agência oficial soviética, a Tass, teve uma visão obscura de toda a atenção da mídia. O interesse em discos dos Beatles estão sendo "artificialmente eleva¬dos a incríveis alturas", dizia um despacho da Tass. O Komsomolskaya Pravda, órgão da Liga da Juventude Comunista, disse que era "uma amarga ironia que um homem que devotara suas músicas e canções para lutar contra a violência viesse a se tornar uma vítima da violência".
Outras reações variaram de uma dona-de-casa de Liverpool ("Ele nunca deveria ter saído de Liverpool") até o comentário de Jerry Lee Lewis: "Eu não acredito. Porra, eu não acredito".
Por volta da quinta-feira, duas pessoas — uma garota da Flórida, de dezes-seis anos, que tomou uma superdose de pílulas, e um homem do Utah, de trinta anos, que atirou em si mesmo — tinham morrido por suas próprias mãos por não conseguirem aceitar o assassinato de Lennon. Yoko telefonou para o New York Daily News dando uma declaração que ela esperava poder evitar outros suicídios: "As pessoas estão me mandando telegramas dizendo: 'Isto é o fim de uma era e de tudo mais' ", disse no que foi descrito como uma voz "abalada pela emoção". "Eu estou realmente muito preocupada. Isto não é o fim de uma era, Starting Over continua, Os anos 80 ainda vão ser um bom período. . . É duro. Gostaria de poder dizer o quanto é duro. Contei o fato a Scan e ele está chorando. Tenho medo que cie chore mais... Mas quando uma coisa como esta acontece todos nós precisamos seguir em frente."
Yoko arranjou tudo para que o corpo de John fosse transportado secreta¬mente para Hartsdale, Nova York, onde foi cremado. Em lugar de um funeral, ela pediu que os íãs de John se lembrassem dele com dez minutos de preces silenciosas às 2:00 horas da tarde de domingo, 14 de dezembro. "John amou e rezou pela raça humana", disse. "Por favor, façam o mesmo por ele. Por favor, lembrem-se de que ele tinha uma profunda fé e seriedade em relação à vida, e apesar de agora ter se unido a uma força superior ainda está conosco aqui." Dentro de seu apartamento no sétimo andar, nem o rádio nem a TV foram ligados. Nenhum jornal entrou no apartamento, e não se tocou nenhuma música. Mesmo muitos dos mais íntimos amigos de John foram mantidos afastados. "Numa situação como esta", disse um porta-voz à guisa de desculpa, "as decisões de quem entra e quem não entra não são feitas democraticamente".
Um ou dois repórteres amigos do casal puderam falar com Yoko por alguns minutos. Ela disse a Robert Hilburn, do Los Angeles Times, que "as pessoas dizem que há algo de errado com Nova York, que é uma cidade doente. Mas John adorava Nova York, e seria o primeiro a dizer que não foi culpa da cidade. Em qualquer lugar pode haver um maluco". Lá embaixo, na calçada, quase uma centena de fãs haviam estabelecido o que acabou sendo uma vigília de vinte e quatro horas. Muitos outros paravam brevemente para dar uma olhada ou acrescentar mais uma lembrança ou uma coroa de flores ao portão da frente.
Naquele sábado, uma multidão de mais de 30 000 pessoas ouviu preces e cantou Give Peace a Chance em frente ao St. George's Hall, na Lime Street, em Liverpool Mais ou menos 5 000 pessoas tinham esperado ali a noite inteira num tempo chuvoso. No final da tarde, a aglomeração era maior, houve des­maios Em um dos locais, algumas centenas de jovens destruíram o palco improvisado onde tocava um conjunto local, resultando em alguns pequenos ferimentos. As coisas se acalmaram com o som de músicas dos Beatles e mensagens gravadas de Yoko Ono, do ex-primeiro ministro Sir Harold Wilson e de Muhammad Ali. Às 7:00 da noite (2:00 horas em Nova York), todos ficaram em silêncio, como Yoko havia pedido. Houve encontros pacíficos de outros fãs no Hyde Park e Trafalgar Square, em Londres. Vigílias formais e informais foram mantidas por toda a América: em Seattle, Chicago, Boston, Los Angeles, Filadélfia e numerosas comunidades menores. Mas a maior reunião teve lugar no Central Park de Nova York, onde uma multidão de 100 000 pessoas permanecia em silêncio e dizia adeus a John naquela tarde cinzenta. Yoko permaneceu dentro do apartamento, com frente para o parque. O coreto da banda estava vazio com exceção de algumas grinaldas de sempre-viva, uma coroa e uma foto de Lennon. Dois conjuntos de alto-falantes tocavam algumas das músicas mais calmas de Lennon: In My Life, You've Got to Hide Your Love Away, Norwegian Wood. O sol surgiu durante Ali You Need Is Love, e a maior parte da multidão respondeu cantando junto e fazendo o sinal de paz — lembrança de uma era que subitamente parecia tão distante no passado. As nuvens reapareceram no final de Give Peace a Chance, a última canção dos dez minutos de silêncio. Às duas horas em ponto, todos os rádios foram desligados, todos os vende­dores de cachorro-quente se calaram, todos os vendedores de dísticos e botões ficaram quietos. Como um só corpo, a multidão pareceu se congelar. A meditação terminou com Imagine, deixando a multidão ao som de I hope someday you join us I And the world will live as one ("Espero que um dia vocês se juntem a nós / E o mundo viva como um só"), como as últimas palavras de Lennon naquela tarde. Jesus Alegria dos Homens, de Bach, acompanhou as pessoas para fora do parque à medida que as nuvens ficavam mais ameaçadoras. Depois, por alguns minutos numa tarde seca, a neve caiu sobre a cidade de Nova York.

4 comentários:

João Carlos disse...

Ainda hoje me comovo com essa coisa sem sentido.Foram dias terríveis de verdade.Eu fiquei meio obnubilado mas no domingo assistindo aquela acontecimento frente ao Dakota eu desabei.Chorei convulsivamente. Tenho esse livro EDU. Publicar esse trecho foi uma comovente homenagem.E coincidência, o dia 8/12 é feriado aqui.N.S. da Conceição.E para nós é o dia da paz.Dia de Lennon.
PS: Em 1994 foi o Tom Jobim que levitou!

RafaCruz disse...

Muito triste o que aconteceu, não entendo como esse homem pôde matar o John sendo fã dele, ele tinha que ser louco mesmo. Eu não estava viva quando ele morreu mas se estivesse ficaria extremamente arrasada com o fato.

Bjs, Rafa
http://rafadeoliveira-tudosobrequalquercoisa.blogspot.com/

Marco disse...

Numa canção em homenagem ao Lennon, o mineiro Beto Guedes perguntava por quê aquela bala não tinha parado. Acho que parar a bala foi a vontade de todos naquele dia. E de alguma forma, lendo esse texto, penso que a bala ainda não parou e que atravessou muito mais que o corpo de Lennon. A bala atingiu em cheio o coração de toda uma geração que cresceu buscando a paz, a liberdade e a alegria de viver. Alguém já disse que quando morre o homem, nasce o mito. Pena que o Lennon tenha se tornado imortal tão cedo.

Anônimo disse...

Edu, blz ?

Mais um ano sem John Lennon ! É difícil aceitar sua morte até hoje ! Ele continuaria fazendo a diferença, como sempre fez, e poderia ter ajudado muito a melhorar este nosso mundo tão violento, tão egoísta e cada vez mais materialista !
Saudade eterna John ...,
Abraços,

Eduardo Sales
Barbacena - MG