sábado, 2 de outubro de 2010

O MURO DE BRASÍLIA - Por Edmundo Macalé

Nova Brasília, 2/10/2030

Prezados Senhores:

Estou lhes escrevendo em resposta ao anúncio publicado solicitando contribuições para o acervo do MUSEU DA MEMÓRIA DA CIDADE. Tenho absoluta certeza de que o que tenho será de enorme valia. Sei também que qualquer lembrança sobre tudo o que houve naquela época, deva ser registrada. Principalmente, para servir de exemplo para que as novas gerações saibam como foi que a tragédia aconteceu e não permitam que aconteça outra vez. Esta parte da história que vou contar aconteceu em meados do ano 2010. É uma história muito triste. Pior que isso: terrível. E, pior ainda: absolutamente verdadeira. Desde já, agradeço pela oportunidade.

O ano é 2010. A cidade, Nova Brasília. Nova Brasília? Sim, Nova Brasília. Um caos social e urbano que em nada lembra o projeto original sonhado por Juscelino, Oscar e Lúcio.

Nova Brasília é uma terra de ninguém. Ou melhor, de muito poucos. Gente safada sem qualquer escrúpulo, que não se envergonha de seus atos sujos e nem com o mal que fazem àquela cidade e a seus habitantes. Aquela massa de trapos humanos que “vive” em Nova Brasília um dia foi gente. Agora, não pode mais ser chamada disso. Foi muito sofrimento até chegar a este ponto.

Nova Brasília é mesmo um lugar muito estranho, feio e sujo. Lá, até o tempo parece andar para trás. Às vezes, lembra muito a Idade Média. Outras, campos de concentração da Segunda Guerra. Na verdade, Nova Brasília é um grande depósito de lixo, restos de seres humanos. Nova Brasília é governada pelos donos de Brasília, a capital, que ficou restrita aos limites do Plano Piloto original. De lá, os poderosos tinham controle sobre tudo em todo o seu entorno: a terra, a vida e a morte das pessoas. A desgraça de Nova Brasília começou muitos anos antes de 1988, quando Zorix I tomou o poder pela primeira vez. A família Zorix, há muito tempo, é dona de meio estado de Goiás. E foi a principal responsável por toda a desordem e o caos que foi tomando conta de tudo, aos poucos.

Toda essa tragédia urbana e humana de Nova Brasília teve início com a forma irresponsável de distribuição de lotes apenas para efeitos eleitoreiros. Logo, as invasões se espalharam de forma incontrolável. Os invasores vinham de toda a parte do país, motivados pelas promessas do bom Zorix, que realizaria o sonho de todos: moradia digna. Ganharam o lote? Não. Ganharam o ca-lote. Mesmo assim, não paravam de chegar. Toda essa explosão demográfica e a conivência do Poder Público, em especial com as invasões e a indústria da grilagem, negociatas de terras públicas na região e assentamentos irregulares, aconteceu de forma muito rápida e devastadora. Então, teve início o grande e interminável ciclo de problemas. O desastre ambiental tornou-se inevitável.Os recursos pluviais acabaram. A fauna morreu. A flora secou.

Em Nova Brasília não existe ordem, nem progresso. Nem leis. Seus governantes vivem somente para a linda e doce Brasília. E, a “vida” em Nova Brasília se esvai a cada dia.

Ora, se não há ordem nem leis, fica claro que todo o mecanismo que gera o sistema social desse lugar está falido. Não existe trabalho, não há saúde, nem educação. Cidadania nem pensar. Programas de habitação? Ha, ha!
Mendigos, doentes e miseráveis amontoam-se por suas ruas sujas e podres. É demiséria humana que estou falando. De gente que virou bicho e não têm o quecomer. Por isso se matam e se tornam canibais. O cenário é horripilante. Parecemuito com filmes que víamos quando éramos crianças sobre o caos do futuro. A violênciaatingiu níveis insuportáveis. Não há policiamento. O que há, de vez em quando, é extermínio. As tropas do Governo entram e saem matando e destruindo aqueles que um dia podem ter sido uma família. O povo de Nova Brasília é muito feio, doente e ignorante. Postos de saúde e escolas são lembranças do passado. Foram todos transformados em albergues. O transporte coletivo urbano foi reduzido às centenas de milhares de carroças que o Governador Zorix IV tão inteligentemente adotou para substituir quaisquer outros tipos de veículos que usassem combustível. A podridão daquelas ruas é algo que ninguém pode esquecer. Nem o choro de crianças com fome. Nem os jovens se prostituindo tão rápido. Nem o brutal tráfico de drogas. Por incrível que possa parecer,o índice de mortalidade - que era altíssimo - era menor que o da proliferação.

Ah, Nova Brasília...Deus se esqueceu de ti.

De forma completamente diferente, vivem os felizes habitantes de Brasília, agora reduzida aos limites de suas asas, o Plano Piloto original (como já disse). Quartel-general da família do Governador Zorix IV e sua poderosa corja de políticos corruptos e sanguinários.

Brasília é e sempre foi fantástica, belíssima! Se Nova Brasília é o inferno, Brasília é o retrato do próprio Éden. Mulheres lindas passeando por suas largas avenidas em seus carrões importados, canteiros e jardins floridos por todos os lados, seu céu sempre tão azul,suas enormes áreas verdes. Todos os habitantes de Brasília são felizes. Têm uma cara boa, corpos sadios e musculosos, crianças muito coradas. Todos vivem muito bem.Ganha-se muito dinheiro fácil com politicagens, jogatinas e negociatas. Aliás, a corrupção é a principal forma de diversão dos poderosos, além de suas dezenas de cassinos, shopping centers,teatros, salas de cinema e restaurantes luxuosos.

Em Brasília existe todo um trabalho de conscientização social contra a perigosa populaçãode Nova Brasília. Os felizes brasilienses são educados e treinados para se manter longe daquela gente feia e imunda. Todos os limites da cidade estão fortemente policiadospelas tropas militares do governador Zorix IV. O povo de Nova Brasília é proibido de se aproximar. Se tentarem, a ordem é para que sejam executados sumariamente! Mas sempre acabam entrando. Geralmente em bandos. Roubam, saqueiam e matam até serem pegos e fuzilados. Tudo isso, causava muito medo naquele povo chique da corte.

Esta freqüente ameaça se tornou o principal problema dos brasilienses que, logo começaram a exigir que o governador tomasse uma drástica providência. Após várias discussões com seus fiéis assessores, Zorix IV decidiu tomar uma atitude. Usando de toda a sabedoria que herdou de Zorix I - que morreu de câncer e o que sobrou é guardado em barris de formol - o governador teve uma idéia que achou brilhante: ordenou que um terço da população de Nova Brasília fosse escravizada e que se construísse um muro imenso, de proporções absurdas, em volta de toda a Brasília. Serão dias e noites de um esforço sobre-humano para aqueles pobres miseráveis conseguirem erguer o tal muro gigantesco. “Tantos vão morrer...” - Serão substituídos! Ninguém se importa. Quando o muro estiver pronto, ninguém poderá entrar ou sair de Brasília a não ser por meios aéreos. Como aquela gente nunca teria acesso a esses meios, o problema estaria resolvido. Este era o raciocínio de Zorix IV. Mas não foi assim que aconteceu.

Seis meses se passaram desde o início da magnífica obra. 95% estava pronto. O plano de Zorix IV era que em três meses sua fortaleza estivesse pronta e segura. O número de escravos mortos durante esses meses é assustador. Para cada um que morria, eram recrutados mais dois. Agora, nem mulheres e nem crianças eram poupadas do trabalho forçado.

- VAMOS! TRABALHEM! Gritava Zorix IV enlouquecido, desfigurado pelo medo. O povo de Nova Brasília não aguentaria muito tempo. Muitos morrem doentes, ou vencidos pelo cansaço. Ou de fome mesmo. Mas todos vão morrendo. Como animais que eram, pensantes ou não, precisavam aprender a usar o instinto pela própria sobrevivência. Foi preciso que dezenas de milhares deles fossem dizimados até que a necessidade começasse a se tornar razão. Sabiam que tinham que se organizar, escolher os líderes certos para a guerra contra o algoz. Afinal, um dia foram gente! Mais do que nunca tinham de voltar a ser.

O instinto, a fome, a necessidade e o mínimo de raciocínio linear seriam as armas dos novos brasilienses. “Não terminamos o muro ainda. E o que falta, é por onde vamos entrar”. Apesar de todas as baixas, o número de habitantes de Nova Brasília ainda era muito superior às tropas de Zorix IV. Então se uniram como um exército de zumbis. E o mais admirável é que, mesmo para uma sub-raça, organizaram-se de forma ordenada, agressiva e muito perigosa. Não havia muitos planos...estratégias? Nenhuma. Sabiam o que tinham de fazer e fizeram. A invasão de Brasília foi da noite para o dia. Até que foi bem rápido. Munidos de facas, facões, paus e pedras, aquela gente horrível penetrou na área mais nobre do país e que parecia tão intransponível. Derrubaram o que estava pronto do muro. Acabaram com Brasília e os brasilienses. Invadiram o palácio da família Zorix e acabaram com todos. O governador Zorix IV foi um dos que tiveram um fim dos mais terríveis. Foi esquartejado e devorado em plena Praça do Buriti.

Pois é. Assim foi a derrocada de Brasília e seus habitantes por aquela gente asquerosa de Nova Brasília. Logo, o Presidente ordenou que todo o ex-estado do Distrito Federal fosse sitiado pelas Forças Armadas. Demorou muito até que houvesse novas eleições em Nova Brasília, que até hoje ainda sofre das seqüelas deixadas pelo despotismo da família Zorix.

Sei que parece uma história fantástica. Absurda. Mas foi exatamente assim que tudo aconteceu. Para aqueles que vivem achando que o futuro nunca chegará, cuidado. O futuro é hoje, agora, já! E não é presente, é castigo.
Postagem dedicada carinhosamente ao meu pai - Pedro Ivo de Sousa e Silva. Valeu!

Um comentário:

João disse...

É VERDADE!EU VI TUDO. ESTAREMOS SEMPRE PRONTOS PARA DEVORAR O PRÓXIMO SAFADO. SEJA ELE QUEM FOR.

J.B. GOOD